Todos os dias tropeçamos com a dolorosa notícia de mais uma mulher que foi maltratada pelo seu companheiro até morrer.
As circunstâncias destas tragédias, tal como mostram os meios de comunicação, vão ganhando características cada vez mais uniformes.
O agressor e a vítima enquadram-se em tipos definidos de condutas determinadas: ele, homem violento e enlouquecido que acaba com a vida da sua companheira, que supostamente o traiu (não se diz como); ela, no entanto, é uma boa pessoa que “nunca deu que falar”.
A informação, em geral, estrutura-se de tal forma que gera um estado de opinião alarmista, como se estivéssemos perante uma epidemia incontrolada: a vida doméstica é um lugar de risco para as mulheres que podem cair inocentemente nas mãos de homens que, não se sabe por que razões, têm uma natureza “agressiva e dominante”.
Esta é a interpretação que se encontra genericamente por aí e até nos movimentos de cidadãos que assistem, assombrados, ao fenómeno e procuram respostas em esquemas simples e tradicionais.
É uma interpretação que vai ganhando terreno a partir de uma exposição superficial de um fenómeno que insiste na violência do agressor e no martírio da vítima, como únicos factores essenciais.
Desta maneira, difunde-se um tipo uniforme de resposta que em nada ajuda a esclarecer o problema. Esta dramática realidade, expressa, no entanto, o estado de confusão e indefinição que existe nos actores e nas suas relações familiares e sociais, como consequência das profundas mudanças a que estamos expostos no futuro, tal como hoje.
Soluções desfocadas
Por outro lado, procuram-se soluções para este fenómeno, tratando de ajustar de novo a realidade e seguindo padrões de conduta tradicionais, isto é, atacar o sintoma pretendendo com isso acabar com a doença, sem questionar a sua verdadeira e complexa origem.
Por isso, estes problemas atacam-se a partir do único objectivo que é lutar pelo fim da conduta agressiva, desenvolvendo novas leis, empregando mais força repressiva e procurando a intervenção de especialistas da conduta humana, para que identifiquem os sintomas do fenómeno num diagnóstico que o isole do seu contexto e do contexto onde se verificam outras circunstâncias com as quais interagem.
A prevenção, dizem, faz-se a partir da escola, com uma educação na igualdade. Para isso, também se estudam os possíveis sintomas entre os adolescentes, tratando de detectar condutas suspeitas.
Neste campo vemos como se preparam de diferente maneira rapazes e raparigas, dando por aceite que os rapazes são prováveis agressores e as raparigas as suas vítimas. Para confirmar esta hipótese não duvidam em submeter alunos e alunas a testes de identificação (de agressor e vítima).
Isso leva-nos a perguntar, no caso de se detectar alguma tendência agressiva, (coisa que não seria de estranhar, tendo em conta as idades destes rapazes e raparigas e da sociedade do espectáculo em que vivemos), que vamos fazer com os casos “suspeitos”? Vamos submetê-los a reeducação, sem mais? Vamos colocá-los em instituições ou vamos marcá-los como proscritos empestados?
De volta à identidade
É natural que nos questionemos sobre o que se passa, mas não esqueçamos quem somos: o homem e a mulher formam o casal humano, não há outra base para conviver e nos projectarmos no futuro como espécie (mesmo que hajam outros tipos de casais e diferentes fórmulas de convivência).
Por conseguinte, os factos sobre os quais reflectimos, levam-nos a fazer perguntas que até agora não foram respondidas. Para onde nos leva a realidade de hoje? Qual é o processo que se abre com tanta dor e sofrimento?
A história sempre interpreta no passado as causas dos acontecimentos quando os que os viveram já cá não estão. Não devemos esperar tanto. É preciso reflectir sobre o que se está a passar e porquê, sem chegar - depressa e mal - a conclusões que nos levam à vitimização, ao ressentimento ou ao desespero.
Como resgatar dos escombros - que os processos actuais vão acumulando - aquelas experiências ainda hoje válidas que se viveram noutros contextos culturais?
Contextos que se afirmaram em determinadas atitudes de relacionamento entre homens e mulheres, a uma divisão dos papéis a desempenhar na família e fora dela, valores e convicções que não é preciso deitar borda fora, pois são leis que funcionam fora do espaço e do tempo.
É necessário desentranhar a natureza dos vínculos, a ordem que sustenta a vida, a razão de ser do amor entre o casal e os filhos, para poder salvar o que é essencial e descartar o que é só fruto dos condicionalismos sociais, económicos ou ideológicos de cada etapa.
Responsabilidade feminina
É necessário compreender o passado e não aceitar uma nova visão da convivência e dos papéis a cumprir, com as mudanças a que estamos sujeitos, com um enorme saco cheio de ressentimento contra o homem, como se as mulheres estivessem livres de responsabilidade.
A responsabilidade tem muitas caras e a toda a acção sucede uma reacção que produz mudanças, mudanças que temos de assumir com todas as consequências.
As mulheres são responsáveis por lutar pela sua dignidade e pelo reconhecimento do que são e também são responsáveis por fazerem com que a visão do outro esteja carregada de confusão sobre a nossa identidade, ao nos prestarmos ao jogo da nossa invisibilidade, quando podíamos daí tirar proveito.
Somos responsáveis de nós quando não fazemos esse caminho e nos moldamos às exigências dos velhos papéis, e também dos novos papéis que nos atribuem hoje, sem contribuir, realmente, com a nossa maneira genuína de ver o mundo.
Papéis que temos de desempenhar por nós próprias, apesar de terem sido construídos sem a nossa participação e impostos pelos outros (os homens) que governam o mundo.
A espécie humana tem dois géneros e, portanto, duas visões que se completam. Até agora, uma das visões governava o lado de fora, a outra organizava o lado de dentro.
Assim, as perturbações do lado de fora eram organizadas a partir da ordem, autoridade, eficácia, pragmatismo, força, concretização, hierarquia. Era difícil chegar ao lado de dentro, aos espaços íntimos, invisíveis, protegidos, maleáveis para a expressão da não existência de forma, das emoções, do que não tem nome.
O desafio dos discursos
A sociedade de hoje tem como desafio discriminar quais os valores prioritários, no meio da confusão dos discursos velhos, carregados de ânsias de poder, autoritarismo e desprezo pela diferença e os discursos aparentemente novos, mas que só prometem a igualdade no estabelecido, não a construção em cooperação, de uma nova realidade.
Valores para um mundo novo, onde há que continuar a procurar o que somos como homens, como mulheres e como humanidade.
Uma humanidade cuja essência masculina e feminina se combinam para configurar as diferenças e a diversidade que se evidenciam em tudo.
Hoje, homens e mulheres são igualmente vítimas de um modelo dominador de convivência. Convivência assente em acordos que a harmonizavam, que deixavam claras as normas do jogo, os papéis e o objectivo da união.
Nesse modelo, a família constituía-se com um fim reprodutivo. Uma instituição sustentada por uma divisão do trabalho sexual, numa sociedade governada só por homens, governo que a mulher acatava, assumindo e administrando a vida íntima familiar.
Atravessando essa realidade estava o amor para o casal, a atracção sexual, o carinho para os filhos, a responsabilidade do seu cuidado e da sua alimentação.
Mudanças fora e dentro
O sentimento que experimento é que esse edifício se parte em mil pedaços para descobrir o tesouro que oculta. Mas a resistência da estrutura, ao desaparecer, produz muita dor e grande confusão e estes factores não deixam ver o seu interior. A cultura tradicional resiste porque teme a sua própria morte.
Por isso, não serve a simples explicação dos factos que analisamos, como uma agressão de homens primitivos contra mulheres subjugadas durante milénios.
É o despertar de um novo conhecimento do real que se abre, rompendo o modelo de realidade que a cultura moderna tinha construído.
Também não é uma questão de reivindicar mais poder contra o tirano homem, porque igualdade não é sinónimo de supremacia de um sobre o outro, igualdade é reconhecimento das diferenças e da diversidade que existe em cada ser humano.
O que está em jogo não é a destruição de um conteúdo, é a reformulação que permita reconhecer as qualidades desse conteúdo e ajustar as fórmulas para viver e conviver em harmonia o que somos e quer emergir de outra maneira.
As mudanças vividas pela mulher
Se falarmos do lado de dentro e nos perguntarmos porque quer agora a mulher despertar como símbolo e sujeito que reflecte a mudança interior: o feminino, o expansivo, o não descoberto, o desconhecido, as perguntas não terminam.
Que difícil é viver uma experiência e descobrir que a tua é mais uma entre muitas! Como detectar que estás a atravessar uma crise geral nos comportamentos sociais, quando és absorvida pelas tuas próprias vivências dessa crise que para ti tem uma forma, circunstâncias, valor, qualidades concretas, uma certa dor?
Como entender que estás a passar por coisas que têm origem numa determinação que escapa à tua vontade e ao teu controlo, que não se sabe de onde vêm nem quem deu a ordem para que aconteça o que estás a viver?
Como ser capaz de discernir o que se passa e o porquê, no meio dos eventos quotidianos e da rotina da cada dia, no meio dos objectivos traçados, no meio do amor, da inocência e da honestidade com que te entregaste um dia a um projecto com outro?
Como descobrir que a violência, o sofrimento e a dor que geram o despertar dessa consciência do que és, do que há em ti, mesmo que até agora estivesse adormecida, é consequência da vontade de estar presente, apesar de isso te poder custar a vida?
Como descobrir que na violência, no sofrimento e na dor que produz a resistência, o agressor (sujeito concreto ou abstracto) está também a fazer despertar a agredida?
Como aceitar que nem o agressor nem a agredida são inimigos que mais parecem duas marionetas, cujos fios são movidos por umas mãos cuja invisibilidade é tal que não projectam nem a sua sombra?
Como poder aceitar que cada passo que deu a humanidade, para uma maior consciência, lhe tenha custado um preço tão alto?
Um mundo que se desmorona
Como manter a vontade de continuar a viver, sem renunciar a uma vida com dignidade, reconhecendo o grande valor de estar aqui neste momento, sendo tão difícil ser fiel a ti mesma e a essa voz interior que te fala mais alto todos os dias, sobre o que representas e a dignidade que tens?
Como desentranhar o verdadeiro sentido da existência, o verdadeiro papel que cumpre desempenhar e que quer viver a sua própria natureza, nestes momentos de grandes promessas de igualdade, que ainda não se materializaram realmente, porque é uma igualdade que não leva em conta as tuas qualidades e a tua própria natureza?
O mundo conhecido desmorona-se, desmorona-se para as mulheres e para os homens, é verdade, mas elas estão submetidas aos empurrões da tomada de consciência do seu protagonismo neste momento: parirem-se a si mesmas.
A busca tradicional e filosófica do "quem sou?" é ainda hoje para uma mulher uma aventura cheia de frustrações, confusão, exclusão, complexos de culpa ou quebra da auto-estima. Essa é uma das faces da moeda.
O homem, um espectador?
A outra face é a do homem que não está na mesma busca de identidade, mesmo que muitos possam ver claro os direitos das mulheres, os seus valores, a sua capacidade para a participação em condições de igualdade.
Eles, os outros seres humanos, são espectadores de um despertar que os renova mas que deixa de pernas para o ar a casa já conquistada.
Como se sente o homem, símbolo do lado de fora, protector da estrutura, defensor das fronteiras, guarda das formas, da realidade, do molde? Qual é a dor do masculino, colonizado, urbanizado, moldado?
Como se sentem os que não entendem nada? Aqueles para quem o impulso renovador da mulher lhe tira o mundo masculino sem remédio, aqueles que não procuram a mudança porque o seu mundo é um mundo seguro, previsível, concreto, sabendo a todo momento o que vai fazer e em que condições?
Um instante nos ciclos da vida
Para a mulher, ao fim e ao cabo, as mudanças sociais no último século, permitiram-lhe uma tomada de consciência, um reconhecimento, uma participação, um papel de actualidade.
É a sua época, pertence a uma mudança de consciência, não tinha nada, nem nada lhe era reconhecido... e agora vê-se empurrada para o despertar.
O homem, no entanto, está ainda a dormitar, ou talvez mesmo a dormir profundamente, porque os sintomas sociais falam de um novo parto humano que não lhe diz nada.
Mas é preciso ver este momento como um instante dos processos e dos ciclos da vida. Só é um passo para descobrir mais uma parcela do real que se quer manifestar neste momento através do feminino: símbolo do oculto, manifestação de uma qualidade humana, metáfora da alma, do íntimo, do que não tem nome, do que vem de dentro, do não desdobrado.
Do homem - manifestação primeira do masculino, realidade externa, qualidade do materializado, preeminência da forma, capacidade protectora do que vem de fora - espera-se a protecção para o parto, criação de novas formas, construção da nova casa.
Aquela onde irão conviver de outra maneira: nem homens superiores à mulher, nem mulheres superiores ao homem, só humanidade renovada.
Risco e ternura
Quando é preciso romper um modelo para conhecer o conteúdo oculto, sem que este se desvirtue, é preciso tratar com delicadeza o objecto com que lidamos.
Por outro lado, é preciso cuidar muito bem cada um dos momentos desta experiência. Neste parto não é uma questão de crianças que está em jogo, é a maior tomada de consciência da humanidade sobre si mesma.
A questão está em enfrentar a mudança de consciência com espírito integrador. Este salto não é linear, é um salto quântico.
Por um lado, porque a mulher está absorvida pelo novo, mas não tem ainda resolvida a sua identidade.
Ao incorporar outras possibilidades não o faz a partir dela mesma, mas a partir dos estímulos que vêm de fora. Por outro lado, o homem tem que integrar as mudanças que se produzem na perspectiva da mulher, tratando-os a partir dele e não deixando a sua companheira só, na busca e na interpretação do que acontece.
Para poder equilibrar o alcance das mudanças que estão a acontecer é necessária a cooperação de ambos.
É preciso considerar que a acção conjunta é a única que pode permitir integrar a nova visão da realidade, sem deixar que se perca a dignidade de cada um dos componentes do casal, nem que se destrua a convivência, porque o desafio foi muito complicado e complexo.
Duas forças antagónicas
Há duas forças opostas que se enfrentam neste processo. De um lado, as formas de violência em que o velho resiste a desaparecer; do outro, a força de vontade e a determinação do novo modelo de interacção social que se manifesta com um impulso imparável de ser e que parece dizer: se se colabora e se não se colabora também, a emergência dessa nova consciência do que somos vai acontecer, mesmo que resistamos a isso.
Assumamos todos, homens e mulheres, a tarefa que temos pela frente e não fujamos cobardemente da experiência.
Cumpre-nos dar um salto de consciência e só tiramos partido disso se o fizermos em conjunto: o velho modelo binário há quase um século que deixou de ter respostas válidas para tudo.
As coisas não são brancas ou pretas. As cores são sete e cada uma, por sua vez, está composta de múltiplos matizes e todos têm a sua origem numa única luz, que a projecta, em metáfora universal, como o Sol que nos ilumina.
O mesmo que em cada amanhecer nos chama a despertar dos nossos sonhos e das nossas rígidas crenças e nos abramos a novas aventuras, neste caso à grande aventura do despertar consciente.
Alicia Montesdeoca