Artigo de Mário Duarte
Advogado e professor
No pretérito dia 13 de Fevereiro, a Assembleia da República aprovou a nova lei do arrendamento urbano, com os votos a favor dos deputados do PS, as abstenções do PSD e do CDS/PP, contra do PCP, Verdes e Bloco de Esquerda.
Confesso que ainda não tive oportunidade de apreciar o novo diploma disciplinador do contrato de locação, na modalidade de arrendamento, com o rigor e a profundidade que desejaria, mas, independentemente das alterações normativas introduzidas ao regime de arrendamento urbano consagrado pelo Dec-lei 321-B/90, de 15 de Outubro, todos temos a percepção de que, o ainda actual regime de arrendamento urbano, sobretudo pelas distorções e abusos a que dá azo, permitindo manter ao longo de décadas rendas de valor irrisório, algumas das quais, devido à recente actualização do valor patrimonial dos imóveis, não chegam actualmente para pagar o IMI, assim como a existência de casas que não têm condições mínimas de habitabilidade.
Carecia este então de uma profunda revisão, de modo a concretizar-se quer um dos princípios e valor fundamental dos contratos, o Princípio da Equidade, quer o Princípio Universal do Respeito pela Dignidade da Pessoa Humana, também neste domínio vergonhosamente violado.
Situação intolerável
Isto é, não pode tolerar-se esta situação, independentemente do interesse das partes e das implicações económicas no mercado imobiliário que o actual RAU (regime do arrendamento urbano) vem provocando nos últimos trinta anos, mas apenas por uma questão de justiça equitativa e de salvaguarda do mínimo de dignidade ético-jurídica a que todo o ser humano tem direito, em que, um dado agregado familiar usufrui, quase gratuitamente, um bem valioso de um terceiro, tantas vezes conseguido pelo esforço de uma vida de trabalho árduo, sem pagar pelo seu gozo o preço justo, isto é uma renda que compense o esforço do investimento, do mesmo modo que é inaceitável obrigar uma família a viver debaixo de um tecto que, em muitos casos, não é mais que um aglomerado de rachadelas e buracos, com todos os riscos e desconforto que tal estado de conservação de um imóvel potencia e proporciona.
Senhorio só podia despejar com acção em tribunal
Por outro lado, o actual RAU permite que o inquilino que esteja em mora pelo não pagamento atempado da renda, só possa ser obrigado a entregar a casa ao senhorio através de um acção de despejo, sendo que o mesmo pode ser evitado, mesmo depois de proposta a acção se, o inquilino citado para contestar, pagar as rendas em atraso acrescidas de 50% a título de penalização pelo cumprimento tardio da obrigação.
Em muitos casos, sobretudo nos arrendamentos mais antigos, em que há inquilinos a pagar um e dois euros, e tantas vezes, apenas por uma questão de teimosia, na sequência de um desentendimento com o senhorio, normalmente por este se recusar a fazer obras na casa, o inquilino deixa de pagar a renda em falta e, contesta a acção, com fundamento, justamente, no facto de o senhorio não cumprir a sua obrigação de fazer as obras.
Cidades com casario cada vez mais degradado
Ainda que o inquilino guiado pela sua “consciência jurídica natural” possa subjectiva e erradamente concluir que não é obrigado a pagar a renda enquanto o senhorio não fizer as obras, defendendo-se assim através de uma “natural excepção de incumprimento”, será que no plano ético-moral lhe deve ser reconhecida tal exigência? Penso que não.
Mais facilmente se poderia compreender a posição do senhorio em recusar-se a fazer as obras atendendo ao valor irrisório da renda que recebe. Como é que alguém que paga um ou dois euros por mês, pode moralmente exigir do senhorio que suporte o custo de obras no arrendado que chegam a custar centenas de milhares de euros!...
É por esta razão que as nossas cidades, sobretudo na sua parte histórica, a mais antiga, vão apresentando um casario cada vez mais degradado, ao mesmo tempo que os tribunais se atulham de acções de despejo, que acabam por não dar em nada.
Rendas justas na altura, desadequadas agora
Acresce o facto de muitas famílias terem visto aumentar significativamente o seu rendimento ao longo de décadas (um operário que na década de sessenta ganhasse trezentos escudos por semana, era mais ou menos o salário de um operário trabalhador da construção civil na época, o seu filho ganha hoje cerca de € 650 por mês, na moeda antiga cerca de 130 contos, o que equivale a um aumento médio de cerca de 1000%) e contudo, nunca se sentiram na obrigação moral de pagar uma renda superior aos míseros duzentos ou trezentos escudos que o primitivo arrendatário começou por pagar, há mais ou menos quarenta anos, renda justa na altura, mas que hoje, para além de ser um valor que está completamente desajustado do nível de vida, não chega sequer para pagar o IMI (imposto municipal sobre imóveis), quanto mais para fazer obras!...
Direito à habitação é constitucionalmente protegido
Não quero com isto dizer que, mesmo os inquilinos que pagam rendas muito baixas não tenham direito a usufruir de uma habitação com um conforto que respeite aquele mínimo da dignidade humana, até porque o direito à habitação é um direito constitucionalmente protegido e deve ser reconhecido a todos sem excepção, de tal modo que, não se pode juridicamente aceitar o argumento invocado por alguns senhorios, de que não fazem as obras porque a renda que recebem não chega para cobrir os seus custos, mas terá de se compreender que um senhorio com rendimentos muito baixos, às vezes vivendo apenas de um magra reforma, não faça as obras por não ter possibilidades de as pagar.
Apesar de o efeito prático ser o mesmo, o fundamento é bem diferente.
Lei não previa negação de obras por renda ser baixa
Num caso estamos perante a invocação de uma excepção ilegal e, por isso ilegítima, pois a lei não prevê a possibilidade de o senhorio não realizar obras no arrendado pelo facto de a renda não ter sido devidamente actualizada e o seu valor ser, por consequência, demasiado baixo.
Na outra hipótese há uma efectiva impossibilidade de o senhorio realizar as obras por não ter dinheiro para as pagar.
Pretendo apenas chamar a atenção para o facto de os particulares terem sido obrigados a substituir o Estado na sua função social em matéria de garantia do direito à habitação e que, tal ónus, tacitamente imposto através de um regime de arrendamento injusto e que provoca as mais graves distorções, dever ser transferido para a função social do Estado o mais rapidamente possível.
Subsídios para as famílias mais carenciadas
Ora, o novo diploma parece apontar nesse sentido, ao prever a concessão de subsídio de renda para as famílias mais carenciadas, designadamente para aquelas cujo rendimento anual bruto corrigido seja inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais.
Se houver rigor e objectividade no apuramento dos rendimentos das famílias, esta medida parece justa e oportuna.
Arrendamento comercial e o negócio dos trespasses
Há contudo quem considere que a nova lei, sendo positiva no âmbito do arrendamento comercial, desde logo porque introduz mais liberdade contratual e porque limita fortemente o negócio obsceno dos trespasses (como sabemos, o actual regime determina que, com o trepasse do estabelecimento comercial, se transmite simultaneamente o contrato de arrendamento para o adquirente do estabelecimento, apenas protegendo o senhorio na aquisição do estabelecimento através de um direito de preferência, que ele normalmente não exerce, pois por regra não tem interesse em explorar o estabelecimento), é contudo negativa em matéria de arrendamento habitacional, uma vez que como existe um número excessivo de casas, mesmo que os inquilinos que pagam rendas muito baixas fossem todos despejados, as casas que ficariam devolutas, normalmente degradadas, não seriam reocupadas nem substituídas por casas novas a curto prazo.
Portugueses não podem suportar rendas justas
Pessoalmente não acho que haja casas em excesso. O que há é falta de rendimento para pagar rendas de quatrocentos ou quinhentos euros mensais, para um salário médio de setecentos e cinquenta euros.
Portanto, o problema não é o excesso de casas, mas o baixo rendimento da maioria dos portugueses e o emprego precário. Isto é, os portugueses, ou porque ganham mal ou porque têm um emprego que não lhes garante um mínimo de estabilidade, não podem suportar rendas justas, rendas que compensem o custo do investimento e, por isso, ninguém se predispõe a construir ou a comprar casas para arrendar, mantendo-se o mercado de arrendamento numa letargia compreensível, mas extremamente prejudicial, sobretudo para quem não tem possibilidade de recorrer a um empréstimo bancário para adquirir casa própria, quer pela precaridade do emprego, quer pelo baixo salário que recebe.
Rendas serão actualizadas de acordo com rendimentos e idade
Por outro lado e, paradoxalmente, há famílias com rendimentos médios elevados que continuam a pagar rendas baixíssimas.
Ora, parece-me que a nova lei, ao prever a actualização faseada das rendas, entre cinco e dez anos, conforme o rendimento do agregado familiar seja superior, ou inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais; o arrendatário tenha idade inferior ou igual ou superior a sessenta e cinco anos, ou não tenha ou tenha deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a sessenta por cento e, fazendo depender o valor da actualização do valor patrimonial tributário do imóvel; do coeficiente de conservação do mesmo e da sua taxa de rentabilidade, a qual não pode ser superior a 4% do valor do imóvel, pretende acabar com as situações escandalosas, em que os inquilinos pagam uma renda insignificante, tendo em conta o actual nível de vida, assim como com a justificação ilegal mas moralmente compreensível da recusa do senhorio em realizar obras na casa, com fundamento no montante excessivamente baixo da renda que recebe, ao mesmo tempo que, ao dilatar no tempo a actualização das rendas, o legislador visa evitar situações de ruptura social, de modo a que as famílias possam ir suportando o aumento de forma gradual, à medida que vai aumentando o seu rendimento, assim como introduzir uma discriminação positiva para os imóveis arrendados com uma menor taxa de rentabilidade.
Arrendamento comercial também será actualizado
Também para o arrendamento comercial se prevê uma actualização faseada ao longo de cinco anos, podendo até estender-se a dez anos, caso o arrendatário do estabelecimento comercial seja uma microempresa ou uma pessoa singular, ou tenha adquirido o estabelecimento por trespasse há menos de cinco anos, ou ainda quando a actividade exercida no local arrendado seja classificada de interesse nacional ou municipal.
Mais justiça
Aparentemente, a filosofia social subjacente ao novo RAU parece inquestionável, procurando-se com a nova lei das rendas proteger a parte mais fraca, sobretudo no arrendamento habitacional, sem deixar contudo de zelar pelos interesses legítimos dos senhorios, nem sempre a parte mais forte e, claramente a mais injustiçada, naqueles casos escandalosos que referi.
Apesar de tudo Lei não agrada
Mas, o que não deixa de ser curioso, é o facto de a nova lei das rendas ter sido contestada, quer pelos inquilinos, quer pelos comerciantes e proprietários.
Neste sentido Romão Lavadinho, presidente da Associação dos Inquilinos Lisbonenses, defende que a lei das rendas vai criar sérias dificuldades às famílias mais carenciadas e às famílias com rendimentos médios, devido ao aumento das rendas, enquanto Manuel Mettelo, presidente da Associação Lisbonense de Proprietários, diz que Jorge Sampaio, ao promulgar a nova lei das rendas, vai ficar ligado a uma lei negativa, ao mesmo tempo que não descarta a possibilidade de recorrer ao tribunal constitucional para requerer a inconstitucionalidade do referido diploma.
Cepticismo quanto aos objectivos do governo
Deste modo, o novo RAU, parece não agradar nem a gregos nem a troianos e, quando assim é, torna-se necessário reavaliar os efeitos que a nova lei das rendas irá provocar, e verificar se realmente não haverá fundados receios para a adopção de um justificado cepticismo quanto aos objectivos que o governo diz pretender atingir com este normativo, designadamente: a promoção do mercado de arrendamento; a devolução da confiança aos agentes económicos; a criação de condições atractivas para o investimento privado no sector imobiliário; a utilização racional dos recursos públicos e privados, a modernização do comércio, a melhoria da qualidade habitacional e a promoção da reabilitação urbana, assim como para temer a frustração das próprias expectativas governamentais, sobretudo tendo em conta as características da população do mercado de arrendamento, já que, desta, e de acordo com dados fornecidos pelo Censo 2001, cerca de 227.000 têm mais de sessenta e cinco anos e possuem de rendimento anual, menos de cinco salários mínimos nacionais; 13.000 têm mais de sessenta e cinco anos e auferem anualmente mais de cinco salários mínimos nacionais; 102.000 têm menos de sessenta e cinco anos e recebem por ano, menos de três salários mínimos nacionais; 57. 000 têm menos de sessenta e cinco anos e auferem entre três e cinco salários mínimos nacionais, por ano, de tal modo que, apenas 30. 000 têm menos de sessenta e cinco anos e arrecadam de rendimento mais de cinco salário mínimos nacionais.
Menos de 100.000 terão capacidade financeira de aguentar o impacto
Se analisarmos este números concluiremos que, sem contar com os arrendatários que têm uma deficiência com um grau superior a 60% de incapacidade, apenas uma pequena parte da população arrendatária, seguramente menos de 100.000 (13.000 com mais de sessenta e cinco anos e mais de cinco salários mínimos nacionais; uma parte dos 57.000 arrendatários que têm menos de sessenta e cinco anos e auferem entre três e cinco salários mínimos nacionais e 30.000 com menos de sessenta e cinco anos e com mais de cinco salários mínimos nacionais) terá capacidade financeira para aguentar o impacto do aumento das rendas, pelo que, todos os restantes, cerca de 350.000, terão direito a receber subsídio de renda, quer pelo seu agregado familiar ter um rendimento anual bruto inferior a três rendimentos mínimos nacionais anuais, independentemente da idade do arrendatário; quer por terem mais de sessenta e cinco anos e o seu agregado familiar auferir um rendimento anual bruto inferior a cinco salários mínimos nacionais anuais.
Alguém vai ter de pagar a “factura”
Neste contexto, o governo tem de se preparar para “abrir os cordões à bolsa” e, em época de crise, alguém vai ter de pagar a factura, uma vez que o orçamento da segurança social continua deficitário, apesar do aumento da cobrança dos impostos recentemente anunciada pelo ministro das finanças, e nosso ilustre conterrâneo Teixeira dos Santos.
Tirar com uma mão e dar com a outra
Será que o ministro da saúde, Correia de Campos, ao admitir que parte dos custos da saúde possam vir a ser suportados pelos próprios utentes, está a tirar com uma mão o que o primeiro-ministro pretende dar com a outra?
Por um lado os portugueses mais pobres vão receber subsídios de renda, mas por outro terão de pagar as consultas médicas e as urgências nos hospitais?
Ou será que, mais uma vez, a classe média vai ter de suportar, através do pagamento de elevadas taxas moderadoras, os serviços de saúde que o governo vai continuar a prestar gratuitamente, e bem, aos portugueses com mais de sessenta e cinco anos e cujo rendimento do agregado familiar é inferior a cinco salário mínimos nacionais anuais?
Já tudo se pode esperar deste governo
Do governo liderado por José Sócrates já tudo se pode esperar. Sobretudo as habilidades de última hora e os malabarismos financeiros que se têm traduzido em sacrificar sempre os mesmos, aqueles que têm rendimentos médios e trabalham por conta de outrem, seja através do aumento dos impostos, concretamente do IVA e do IRS; seja por via do pagamento de taxas pela prestação de serviços públicos, mesmo que estes se traduzam na prestação de cuidados primários de saúde.
O novo RAU é uma estratégia de redistribuição de rendimentos
A análise do novo RAU é mais do que uma reflexão sobre o problema do arrendamento, é sobretudo a apreciação de uma estratégia de redistribuição de rendimentos que só deve admitir-se se for justa, isto é se contribuir para melhorar a vida dos mais pobres sem penalizar excessivamente os rendimentos da classe média, pois, quanto aos mais ricos, esses ficam sempre de fora das questões sociais, porque ao contrário do Zé do Telhado, o Zé Sócrates não tem coragem para tirar a quem tem mais para dar a quem tem menos.
Aliás o primeiro-ministro desde que tomou posse só tem conseguido fazer uma coisa: substituir os ricos pela classe média para equilibrar as finanças públicas e combater o deficit orçamental, o que, para um governo que se diz socialista, é no mínimo contraditório, pois, deste modo, não só não se está a combater a pobreza, mas a alargá-la àqueles que por esforço próprio e pelo investimento dos seus pais, conseguiram uma mobilidade social que já não podem garantir aos seus filhos.
Por este caminho não nos aproximaremos da Europa comunitária, mas caminharemos, sem qualquer desprestigio, a passos largos ao encontro dos nossos irmãos brasileiros, cumprindo-se assim, pelas piores razões, a nossa vocação atlântica, sem sairmos da Europa!...