Uma nova teoria sobre a adaptação humana sugere que os nossos antepassados desenvolveram a capacidade de jogar para fomentar o desenvolvimento de uma forma de vida mais cooperativa.
Segundo o psicólogo Peter Gray, o uso do jogo nos primórdios da humanidade teria ajudado a vencer as tendências de agressão e de domínio que teriam tornado impossível uma sociedade cooperativa. Desde então, o jogo manteve-se como ferramenta de coesão social até à actualidade… ou quase.
Gray explica que “o jogo e o humor não são só formas de diversão mas servem para promover atitudes igualitárias, intensificar a partilha e, no momento certo, ajudaram os humanos caçadores-recolectores a conseguir a paz social da qual dependiam para sobreviver”.
O jogo ideal
Num artigo publicado na revista especializada American Journal of Play, Gray assinala que os humanos daquela época utilizavam o humor, de maneira deliberada, para manter a igualdade e evitar os distúrbios. Até as suas leis e rituais tinham algo similar às do jogo.
Na actualidade, as actividades lúdicas, que permitem resistir à avareza ou arrogância - e que promovem a empatia, perderam-se em grande medida.
Segundo Gray, não seria exagerado “sugerir que as acções egoístas que propiciaram o colapso económico recente são, em parte, sintomas de uma sociedade que se esqueceu como jogar”.
O interesse pelo jogo é cada vez maior entre psicólogos, educadores e público em geral porque “as pessoas começam a aperceber-se que fomos muito longe ao direccionar as crianças unicamente para a competição”, afirmou o psicólogo.
E continuou: “privamos as crianças das formas normais, não competitivas, do jogo social, que são tão importantes para o desenvolvimento do sentido da igualdade, ligação e empatia”.
Jogo livre
Gray afirma que o tipo de “jogo” que num dado momento ajudou a desenvolver estas qualidades nas crianças dos nossos antepassados seria aquele que é livremente escolhido, que mistura idades, que não está organizado pelos adultos e que não é competitivo.
Este “jogo livre” é muito diferente dos entretimentos actuais das crianças: jogos de vídeo, televisão ou actividades extra-escolares e desportos.
Por outro lado, a presença habitual de adultos supervisores e observadores nos jogos infantis faz com que as crianças assumam uma postura competitiva.
Desta forma perdem-se as vantagens que os jogos auto-organizados proporcionam: com eles as crianças aprendem a relacionar-se bem com diferentes tipos de pessoas, a comprometer-se, antecipar e conhecer as necessidades dos outros (para que os outros queiram continuar a jogar com ele, por exemplo, vendo, desta forma, o mundo na óptica do outro).
“As crianças e os adolescentes das culturas primitivas faziam “jogos livres” constantemente, convertendo-se assim em adultos extraordinariamente cooperativos e igualitários”, assinala Gray.
O jogo acaba por ser uma componente fundamental de todos os seres humanos na idade adulta, ao ter permitido que os jovens se desenvolvessem como seres intensamente sociais e colaboradores.
O jogo a todos os níveis
No decurso da investigação de Gray, tornou-se cada vez mais evidente que o jogo e o humor se encontravam no núcleo das estruturas sociais dos caçadores-recolectores adultos.
Estes usavam o humor, deliberadamente, para manter as igualdades e evitar os conflitos. As crenças religiosas e as cerimónias também eram festivas e estavam baseadas em suposições sobre as suas próprias deidades de igualdade, humor e vontades caprichosas.
Além disso, em tais sociedades, também se mantinham atitudes “brincalhonas” na caça, durante a colheita e durante outras actividades de subsistência, para permitir em parte que cada pessoa escolhesse quando, como e quanto se ocuparia dessas actividades.
Isto é, o jogo não só ajudava a criar um compromisso em actividades comuns mas também a manter, em certa medida, a autonomia individual.
Segundo Kirk M. Endicott, antropólogo especialista nestas sociedades, “a perspectiva de Gray ajudará a compreender a razão por que algumas sociedades podem viver em harmonia e ser cooperativas, fomentando ao mesmo tempo a autonomia dos indivíduos”.
Yaiza Martínez